Meu pai, o Dany Glover, sempre fazia peixe na telha nos tempos idos de Goiás. O grande almoço de domingo. Isso mesmo: Temos um peixe, uma telha, alguns condimentos e por fim uma receita digna de fazer pescador pantaneiro chorar de emoção. Ok, não é a telha da sua casa. Eu explico.
A origem da receita vem de duas mentes sábias goianas: Bariani Ortencio, escritor, folclorista e fã de comida bem antes de estar na moda ser gourmet morre aqui um coala, e o professor Aldair da Silveira Aires. Em 1978, coincidentemente o ano em que nasci, o “seo” Aldair fundou o lendário restaurante goianiense, Forno de Barro, na então Rua 83 da capital.
Na ocasião ele viu umas amostras de telhas da cerâmica Serrinha, de Ortencio. Alma gorda que só, “seo” Aires teve a brilhante ideia de juntar o que já era bom a algo inusitado: servir a peixada numa telha. “Prensei várias telhas plan e colonial, fechei as extremidades antes de queimá-las, e testamos aqui na minha residência. O prato foi aplaudido por nossos convidados”, descreve Ortencio em seu livro Cozinha Goiana (editora Kelps).
A história acima é recente. Mas a receita tão jovem e bela é sucesso absoluto no Goiás. O peixe na telha é servido em quase todo restaurante do estado e rende prêmios aos seus fazedores. Fora de lá, também. O restaurante Rancho Goiano, em São Paulo, por exemplo, tem em seu cardápio.
De Curitiba a Fernando de Noronha você encontra uma versão do prato. Mas se você quiser fazer a sua pode apelar para a minha receita. Obviamente, você não tem uma telha fechada nas extremidades como a do “seo” Ortêncio em casa. Eu tenho porque meu pai me deu e eu paguei 50 dinheiros de excesso de bagagem por causa dela.
A solução é usar toda e qualquer panela de barro que você tenha à mão. Caso contrário, lamento, você terá que usar uma travessa comum. Ficará gostoso, mas não terá a mesma alma.
Tradicionalmente o peixe na telha é feito com peixe de água doce, de couro, limpo e em postas. Há também versões com peixes de escamas inteiros, limpos e postos na telha com os temperos.
Eu vou de pintado em postas. O meu preferido desde sempre . Um peixe gordo e saboroso, ideal pra fazer assim, em ensopados. E não me venha com essa conversa de que peixe de rio tem gosto de barro. Nem os índios acreditam mais nisso. E eu desafio os “barristas” a diferenciarem no prato o tipo de água em que o peixe viveu.
Para acompanhar o pintado na telha, o comum é servir um bom pirão feito a partir do caldo da cabeça e da espinha do peixe, e arroz branco. Mas eu inovei. Até porque onde nesse mundo eu ia achar um forno à lenha pra seguir a risca a receita?
Logo, sem lenhas e com o meu pintado de cativeiro (pescar? Em SP?) eu fiz a minha versão do peixe na telha. Com um molho de responsabilidade e para acompanhar um cuscuz de farinha d’agua importada clandestinamente do Pará via contatos eficientes no tráfico de comida. Segue…
Para o peixe
1kg da pintado – tem que ser um peixe de couro cortado em postas
3 pimentões médios, um verde, um amarelo e um vermelho
1kg de tomates maduros
3 cebolas
Suco de um limão
4 dentes de alho
Sal a gosto
Pimenta de bode a gosto (ela cheira mais que arde, mas se não gosta exclua)
Cheiro verde a gosto
200 ml de leite de coco (você pode fazer o seu como eu)
Farinha de rosca a gosto
Preparo
Tempere as postas com sal, pimenta e parte do alho picado. Molhe com limão. Em Goiás o indicado é deixar o peixe no molho com temperos por pelo menos, duas horas. A ideia é pré cozer o peixe no limão. Eu tava compressa e deixei só o tempo de fazer o refogado do molho.
Falando em molho. Corte as cebolas em rodelas e refogue em azeite. Acrescente o restante do alho. Coloque a maior parte dos tomates também cortados em rodelas. Deixe formar um molho por uns 20min. Por último, junte os pimentões também em rodelas (retire as sementes e os veios brancos). Regue com o leite de coco. Eu faço o meu natural. É simples: compre coco fresco ralado não vale de saquinho, bata no liquidificador com água de coco até dizer chega. Coe com um pano de prato limpo. Feito! Temos leite de coco.
Unte a telha com um fio de azeite e disponha as postas temperadas e cubra com o molho. Coloque algumas rodelas de tomate e salpique o cheiro verde e a farinha de rosca por cima. Leve ao forno alto (220º C) por 10 minutos. Sirva com pirão ou com o cuscuz de farinha d’água.
Falar do jamon pata negra. Uma pauta começou simples, mas que de simples não tinha nada. Quanto mais pesquisava e entrevistava, mais descobria assunto pra colocar na reportagem. Resumir os embutidos ibéricos numa reportagem é missão impossível. Cada informação mostra o quão complexa é tal tradição gastronômica e revela até mesmo uma rivalidade entre os povos da Extremadura.
Eu tentei condensar nesse texto um pouco do que aprendi sobre o famoso pata negra. Para quem ainda não provou essa iguaria, por favor, que o faça já.
Cariri é boa terra
De mulher bonita
De cabra bom no fuzi.
Mas em redor de uma légua
Tem cada filho de uma égua
Que nega até um piqui.*
Guariroba, jurubeba, baru, araticum. Frutos do Cerrado, que apesar de saborosos, não podem ser comparados ao piqui**. O sabor peculiar, o aroma, a cor e a forma de comê-lo são tão próprios que causam opiniões controversas. No melhor estilo ame-o ou deixe-o, o piqui desperta amores e rancores. Mas é sem dúvida uma unanimidade regional.
Também há piqui em outras regiões. Maranhão, Piauí, Mato Grosso, Minas Gerais, Bahia…, mas só “no Goiás” ele é filho ilustre, com direito adquirido de prato típico indispensável em qualquer mesa local há tempos. “Tribos indígenas já o consumiam muito antes das bandeiras paulistas devassarem o interior do País. Quando se fixaram as primeiras vilas e fazendas, integrou-se ao cardápio escasso dos sertanejos, que até hoje têm no piqui uma importante fonte alimentícia”, registra Bariani Ortencio, autor de Cozinha Goiana (editora Kelps).
Trata-se de uma fruta da família das cariocaráceas de casca grossa e verde escuro que abriga de duas a quatro sementes amarelas. Do tupi-guarani, pyqui, significa casca espinhenta (daí piqui, com i). Nome um tanto oportuno. Em Goiás se diz que “do pequi come-se a polpa e a amêndoa. Entre elas há os espinhos”. É preciso destreza. Apesar de minúsculos, se ingeridos os espinhos podem causar um bom estrago na boca***.
Por isso, o jeito certo de comer piqui é com as mãos. De preferência as duas para os mais inexperientes. Não há espaço pra frescuras! Para saboreá-lo é preciso amor, paciência e parcimônia. Um ato de entrega à fatal lambança causada pela cremosidade da polpa amarelo-ouro.
Pequi pra que te quero
Muito calórico, o piqui tem na composição ferro, fósforo e cálcio. É rico em vitaminas A, C e E, e folcloricamente famoso por suas propriedades afrodisíacas e antiesterelizantes. “Na região do piquizeiro não há homem frouxo nem mulher que nunca pariu”, cita Ortencio. Serve como condimento, acompanhamento, tempero e, graças à sua composição, substitui a carne nas mesas menos abastadas. “Come-se o piqui puro, com arroz, frango, farinha e até leite”, descreve o autor.
Há ainda a semente, igualmente nutritiva e saborosa. Pode ser consumida crua ou assada. É a principal fonte oleoginosa da fruta. Além de condimento, seu óleo é também matéria-prima para o licor e base para paçocas salgadas de farinha na matula dos tropeiros.
Como todo bom fruto silvestre o pequi obedece a um ciclo produtivo curto, tendo seu auge entre outubro e novembro, quando dão os melhores frutos. Daí a origem dos óleos, licores, pastas e conservas para o consumo ao longo do ano.
Encontrar piqui em São Paulo não é tão simples. No mercado Municipal sempre há conservas de polpa e em pasta. Mas “in natura” somente em sacas no Ceagesp.
Como visto, tenho um caso de amor com o pequi. Gosto de roer as bolinhas carnudas e amarelas desde que a vida me deu dentes. Roer sim. Porque o pequi não se come, se rói. Por isso, nada mais justo que homenagear a culinária goiana com esse clássico. Segue a minha receita de frango com piqui.
*Trova de autoria de Sr. Cavalcanti, da Associação dos Municípios do Estado de Goiás, quando numa visita a Pernambuco, na Feira de Cariri, avistou uma banca onde vendia pequis, quis pegar um, mas foi impedido pela dona.
**É também chamado de pequi, mas não lá no Goiás.
***folcloristas goianos dizem que em caso os espinhos penetrem na mucosa da língua deve-se passar azeite doce para que eles saiam. Ou lamber um chapéu de feltro (pois é!).
Receita: Frango com Pequi (ou piqui, como preferir)
Ingredientes
– 1 kg de cortes de frango com osso e pele (de preferência caipira)
– 1l de piqui (lá no Goiás o piqui é vendido em latas de óleo de 1 litro)
– 4 espigas de milho verde (cortadas em rodelo ou em debulhado na faca)
– sal
– pimenta de bode a gosto
– pimenta do reino moída
– 4 dentes de alho
– cheiro verde (salsinha e coentro)
– 1 limão cravo
– 1 colher de café de açafrão da terra
Preparo
Amasse o alho, a pimenta e um pouco de sal. Essa é a base de 10 entre 10 refogados caseiros goianos (a pimenta de bode é mais cheirosa que ardida. Mas para quem não tem hábito pode ser forte, para evitar excesso dispense as sementes). Tempere os cortes de frango com a mistura e com o açafrão da terra. Regue com o suco do limão. Deixe descansar um pouco pra acentuar o tempero. Aqueça uma caçarola com um fio de azeite e coloque os cortes de frango para dourar com a pele virada para baixo. Quando estiver dourado escorra o excesso de óleo.
Em outra panela coloque o pequi para cozinhar com um pouco de sal, uma pimenta de bode inteira e cubra com água.
Deixe-os cozinhar até que o molho engrosse e eles se tornem mais amarelos e com a polpa macia (passe o garfo, se ela sair com facilidade está no ponto). Caso queira usar o milho verde em rodelas (de até cinco centímetros de espessura) o ideal é cozinha-las junto com os piquis.
Despeje o piqui com o caldo no frango. Se a opção for o milho em grãos pode agrega-lo nesse momento. Deixe cozinhar até que a carne fique macia, mexendo o mínimo possível, mas sem deixar que o molho seque totalmente. Caso seque antes da carne atingir o ponto, acrescente um pouco de água quente. Mas cuidado, a ideia é ter um molho encorpado e um tanto untuoso. Salpique o cheiro verde para finalizar. Sirva com arroz branco.